17/04/2021 às 09h49min - Atualizada em 17/04/2021 às 09h49min
CRÔNICA: "Sobrevivente", por Mário Sérgio de Melo
Quando deixamos Ponta Grossa rumo às matas de Itaiacoca, ainda duvidava da existência daquela árvore, que, pelo alegado porte, deveria ter vários séculos
Por Mário Sérgio de Melo
Foto: Alina Andina / Flickr
─ No sítio de meu vizinho, lá em Itaiacoca, tem um pinheiro araucária colossal, precisa de uns cinco homens pra abraçar o tronco.
Em plena celeuma sobre a conflituosa criação de unidades de conservação nos Campos Gerais do Paraná, em 2005-06, lá fomos nós conhecer aquela gigante. Não se conheciam na região árvores daquele tamanho. Tinham sido todas abatidas, no afã dos idos de 1960-70, quando o país tornou-se grande exportador da madeira do “pinheiro-do-brasil”, que vinha até substituindo o célebre “pinho-de-riga”.
Quando meu amigo Paulo, seu vizinho e eu deixamos Ponta Grossa rumo às matas de Itaiacoca, ainda duvidava que fosse verídica a notícia da existência daquela árvore, que, pelo alegado porte, deveria ter vários séculos. Talvez antecedesse a passagem dos pioneiros exploradores e a chegada dos colonizadores à região. Apesar das dúvidas, lá fomos nós. Depois de um percurso de pouco mais de uma hora, primeiro por asfalto até o Passo do Pupo, depois por estrada de chão até Itaiacoca, depois por trilha carroçável já em meio à mata e, por fim, por um carreiro de umas poucas centenas de metros a pé, chegamos à grande árvore.
Era mesmo enorme! Os três juntos, ficamos longe de dar conta de abraçar-lhe a circunferência. E o percurso a pé pelo carreiro estava bastante pisoteado, aquela majestade era muito visitada. Uma celebridade. Contradições do bicho homem: no passado, tínhamos quase exterminado as araucárias; agora, aquele exemplar que restara atraía nossa admiração. Talvez até nosso respeito e arrependimento?
Encantamo-nos admirando aquela soberana. Logo se compreendia a razão de ela ter escapado de ser abatida quando da febre das madeireiras: ela estava numa encosta, o tronco ligeiramente inclinado, à beira de uma profunda ravina em meio à mata. Se tivesse sido abatida, teria caído nuns grotões de onde não poderia ser içada. Foi poupada por ter sido considerada inaproveitável. Era uma sobrevivente, graças à casualidade do inóspito sítio em que ousara vicejar e crescer.
Procuramos nas cercanias, restos de pinhas desfeitas no chão, cascas de pinhões devorados, ora roídos, ora esgarçados, revelavam que aquela matrona era dadivosa em alimentar a fauna e semear descendentes. De fato, muitos jovens pinheiros espalhavam-se ao redor daquela anciã. A frustração da sanha dos madeireiros mais de meio século antes era agora nosso espanto, o pinhão era o alimento dos pássaros, macacos e cutias, as sementes eram a garantia da sobrevivência da elegante, generosa e ameaçada espécie que marca o clímax evolutivo da mata.
Mata que quase exterminamos, e que só agora mal começamos a compreender que é essencial para preservar o equilíbrio do ambiente, que nos agracia com o solo fértil, a água, o ar que respiramos, a proteção da biodiversidade, o controle das pragas. Enfim, que sustenta a vida. Bendito o legado daquela sobrevivente; afortunada aquela casualidade do relevo que a poupou do abate!
MÁRIO SÉRGIO DE MELO é geólogo, professor aposentado do departamento de Geociências da UEPG