03/05/2021 às 11h12min - Atualizada em 03/05/2021 às 11h12min
CRÔNICA: Vaga para Agronomia, por Miguel Sanches Neto
Depois de ter defendido minha dissertação de mestrado, eu estava sem rumo profissional. Queria ser escritor, mas precisava me manter
Por Miguel Sanches Neto
Foto: Juliana Sanches, 1991, Morro das Pedras, Florianópolis (SC)
Ao passar o final do ano em Peabiru, depois de ter defendido minha dissertação de mestrado na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) em 18 de dezembro de 1992, eu estava sem rumo profissional. Queria ser escritor, mas precisava me manter. Nutria a ilusão de trocar minha casa por uma propriedade rural em Colombo para produzir mel. Ser apicultor era um sonho romântico do intelectual de volta ao convívio com o mundo agrícola.
Minha irmã, já casada e morando no Rio Grande, estava em Peabiru e leu na 'Gazeta do Povo' que havia uma vaga para professor de Literatura de Língua Portuguesa na Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), e que as inscrições fechavam em poucos dias. Comprei imediatamente passagens de ônibus da empresa Nordeste e voltamos a Curitiba, juntei meus documentos e, no mesmo dia, vim a Ponta Grossa, descendo pela primeira vez nesta que seria minha segunda terra natal, na rodoviária antiga, de paredes revestidas de madeira, lembrando locações de filmes do Velho Oeste.
Tomei um ônibus, desci na avenida Vicente Machado, e, perguntando no comércio, cheguei a pé à Praça Santos Andrade 1, que ninguém conhecia. Só depois fui entender que o prédio da Universidade ocupava a praça inteira, pois havia sido construído em toda a sua extensão. Curiosamente, era na Praça Santos Andrade, em Curitiba, o prédio histórico da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Entrei pelo bloco B, onde fica o curso de Letras, e saí na parte interna, descoberta. O terreno é ladeado por blocos e há um pátio que lembra, pelo menos me lembrou, o de um presídio. Até hoje não consigo tirar esta impressão de minha sensibilidade todas as vezes que cruzo aquele local, que pretendo em breve revitalizar.
A sala de inscrição ficava na parte inferior do pátio. Fui recebido no balcão por uma funcionária, que conferia a ficha e os documentos.
Já estava para sair quando entrou o presidente da Comissão de Concursos. Daniel Albach Tavares tinha uma maneira de olhar a gente medindo de cima a baixo. Fez isso comigo e daí perguntou.
– Agronomia?
Da época que cursei o Colégio Agrícola, e pela vida espartana que levava, mantive por muito tempo o hábito de usar sapatões de roça, daqueles de sola de pneu, e calças jeans desbotadas. Foi meu uniforme em todo o período do Mestrado.
– Literatura – respondi.
– Que coisa, hein – e ele foi para sua mesa sem me dar mais atenção.
Durante toda minha trajetória profissional insisti em não corresponder às imagens estereotipadas dos papeis que assumimos. Quem estava ali fazendo a inscrição era um jovem mestre em literatura que cogitara largar tudo para ser apicultor.
MIGUEL SANCHES NETO é escritor, professor e reitor da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG)