14/05/2021 às 14h27min - Atualizada em 14/05/2021 às 14h27min

CRÔNICA: Juízo final, por Mário Sérgio de Melo

A morte é certa, mas incerta na sua hora. Mas vamos ao que interessa. O que você tem a dizer sobre sua vida?

Por Mário Sérgio de Melo
Foto: Freepik
Risonho Sensalva de repente viu-se diante de um portal grandioso. Não havia nenhuma identificação, mas ele sabia: era a porta do fim da vida.

Ainda assustado, sem saber o que estava acontecendo, foi se aproximando. Esperava encontrar ou um velho de barba e batina branca, ou ─ tomara que não ─ um ente vermelho com chifres e rabo. Por um momento repassou os feitos de sua vida. Não achava que merecesse o inferno, mas mereceria o paraíso?

Outra surpresa! Quem apareceu foi um jovem vestido a executivo, habilmente manejando um ‘tablet’ de última geração. 

─ Morri? Ou estou sonhando?

─ Olá, Risonho Sensalva. Não, isto não é bem um sonho. É um levantamento preliminar dos seus dados de vida, para o desenlace futuro. Você ainda não morreu, o que acontecerá num futuro incerto. Mas, com o tamanho da população atual, temos que agilizar no processamento dos dados. Notou que não há fila por aqui? É graças a estas providências de planejamento.

─ Quer dizer que ainda não morri, mas vou morrer em breve?

─ Ainda não morreu. Quando vai morrer, se é em breve ou não, só Deus sabe.

─ Mas não é ele quem dirige isto aqui?

─ Não. Na verdade este é um serviço terceirizado. Atendemos a vários clientes.

─ Mas se não sabe quando vou morrer, como é que pode fazer este levantamento?

─ Não se preocupe, Risonho. Isto não é um sonho, mas é como se fosse. Quando você acordar pela manhã, não vai lembrar de nada disto. Sua vida vai continuar como sempre. A morte é certa, mas incerta na sua hora. Mas vamos ao que interessa. O que você tem a dizer sobre sua vida? O que lembra que poderia credenciá-lo para um ou outro caminho no fim de sua vida?

Risonho calou-se, momentaneamente pensativo. Então começou sua defesa:

─ Bem, desde criança fui sempre um bom aluno…

─ Ora, a importância da educação formal anda muito relativizada. Hoje se considera que qualidades como empreendedorismo, iniciativa, agressividade e malícia profissional são mais efetivas para o sucesso…

─ Ah, sim, sim… Mas nos meus amores, desde jovem, fui sempre muito respeitoso e fiel…

─ Ãhã! Essas qualidades também andam em questionamento. Uma certa ousadia é essencial para apimentar os relacionamentos. E fidelidade… Ora, está provado que o ser humano é, definitivamente, um ser infiel. A plenitude dos relacionamentos depende da concorrência. Funciona como nos negócios.

─ Fui um bom pai de família? (a esta altura Risonho já duvidava de seus feitos).

─ Muitos acreditam que o núcleo familiar é a principal estrutura perpetuadora de vícios, preconceitos e atavismos…

Já se desesperando de perceber que o homem desqualificava tudo que pensava terem sido virtudes em sua vida, Risonho Sensalva começou a exasperar-se:

─ Fui um profissional ético, que sempre procurou agir no interesse dos direitos daqueles a quem servi, da qualidade, da honestidade, da justiça, da verdade…

─ Ora, estamos num novo tempo. Nem sempre os clientes têm razão. Aliás, quase nunca têm razão. Não sabem que decisão tomar de forma a fortalecer o mercado, que é quem mantém os empregos, a produção. Já qualidade, meu amigo, quer dizer durabilidade. E se algo dura, a fábrica fecha! E para onde vão os empregos? E honestidade, justiça, verdade! Ora, esses conceitos são muito relativos. O que pode ser honesto e justo para um indivíduo pode ser prejudicial para a sociedade. E vice-versa. Verdade então! Existe uma verdade diferente para cada ser humano!

─ Ah, sobre isto tenho minhas convicções. E não abro mão! Sempre procurei seguir os ensinamentos de minha religião. De que devemos agir com o próximo da mesma maneira que queremos que ajam conosco. Isto me faz crer no respeito, na solidariedade, na justiça e na inclusão social, no amor… 

De repente, Risonho Sensalva despertou em seu quarto de dormir. Era uma manhã corriqueira. Ele tinha a sensação de que algo se passara, mas não conseguia se lembrar do que era.

Lá no portal do fim da vida, o executivo Rufinus Mercadante, pensativo, digitava em seu ‘tablet’:

─ Esse é de outro tempo. Vai ter de reencarnar! E vai ter de renascer como, como… 

Hesitou um pouco.

─ ... palhaço!? 

MÁRIO SÉRGIO DE MELO é professor aposentado do departamento de Geociências da UEPG, escritor e membro da Academia de Letras dos Campos Gerais 

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